O assalto ao Estado

"Chegar ao poder pelo voto não é um cheque em branco da sociedade pra fazer o que bem quiser, acima do bem e do mal"
Hoje, para se defender, a presidente afastada, Dilma Rousseff, subirá ao cadafalso no qual será guilhotinada, no Senado, depois de três dias de oitiva das testemunhas de defesa e acusação, na qual se digladiariam os senadores que permanecem fiéis à presidente afastada e, digamos, seus algozes do PMDB e outros ex-aliados, além da antiga oposição, liderada pelo PSDB. Seu infortúnio acabará provavelmente na quarta-feira, quando será cassada, se, antes disso, não renunciar num gesto espetacular, para não legitimar o julgamento.
Em meio ao bate-boca das excelências, que se arrasta há meses, há duas lógicas: de um lado, a intenção das forças antipetistas de dar posse definitiva ao vice-presidente interino, Michel Temer, e assumir o poder até 2018; de outro, o mise-en-scene petista para sustentar a narrativa do “golpe de estado” e dela sair como vítima, para não ter que assumir a responsabilidade principal pela crise econômica, política e ética que assombra o país. No mérito do processo de impeachment, porém, está o respeito à Lei Orçamentária da União e à Lei de Responsabilidade Fiscal, que é tratada, às vezes, como uma coisa banal.
A derrocada do governo Dilma Rousseff está associada ao assalto ao Estado pelo PT e seus aliados. Chegaram ao poder pelo voto, mas não com um cheque em branco da sociedade para fazer o que bem quisessem, acima do bem e do mal. Esse foi o recado que receberam, das ruas em 2013, e não foi ouvido; e em 2015, quando se deu o engajamento popular na campanha do impeachment. Houve um assalto ao Estado em dois sentidos: primeiro, o aparelhamento do governo por meio da ocupação de milhares de cargos comissionados, tanto na administração direta, como na indireta, inclusive estatais, de forma fisiológica e clientelística; segundo, o sistemático desvio de recursos públicos para financiamento eleitoral e formação de patrimônio pessoal, via superfaturamento de obras e serviços. Veremos o que Dilma Rousseff tem a dizer sobre isso hoje, no seu jus esperneandis.
Os aliados de Dilma Rousseff não estão nem aí para as consequências do desrespeito à Lei Orçamentária e à Lei de Responsabilidade Fiscal, que tratam como meras formalidades. A aprovação do deficit fiscal de R$ 170,5 bilhões em 2016 pelo Congresso, para permitir que o governo Temer possa gastar mais do que arrecada enquanto não consegue aprovar o “ajuste fiscal”, de certa forma corrobora essa banalização. Dilma e o PT não assumem a responsabilidade sobre o desastre econômico que provocaram ao gastar mais do que o governo arrecada e acreditam que o Estado brasileiro pode tudo. Na verdade, alguns ex-aliados que permanecem no poder sob a liderança do PMDB, quanto a isso, não pensam muito diferente. Talvez seja essa a razão de a discussão no Senado ser polarizada pelos petistas e pela antiga oposição.
"Desastre nacional"
Os resultados do “assalto ao Estado”, porém, são auto-explicativos. Queda de 16% do PIB per capita entre 2013 e 2016, isto é, de R$ 30,5 mil para R$ 25,7 mil por ano. Aumento do desemprego de 6,4% para 11,2%, com a demissão de 12 milhões de trabalhadores. A pior recessão da história: já chega a 6%. A Grande Recessão de 1929-1933 foi de 5,3%; a de 1980 a 1983, 6,3%; e a de 1989 a1992, 3,4%.
A crise fiscal é devastadora, por causa da elevação dos gastos públicos e da queda de arrecadação: sem a reforma da Previdência, o deficit fiscal subirá de R$ 145 bilhões para R$ 200 bilhões. Aumentar os impostos não é uma solução razoável. A dívida pública chegará a 70% do PIB ao final do ano.
É nesse ambiente que Dilma Rousseff está sendo julgada, por causa das “pedaladas fiscais”. Nada a ver com a Operação Lava-Jato, que desnuda os mecanismos do outro assalto ao poder ao qual nos referimos lá no começo. Parece kafkiano, mas não é. A presidente Dilma Rousseff está bastante enrolada por causa das investigações sobre o caixa dois de suas campanhas eleitorais de 2010 e 2014, mas não pode ser investigada por fatos anteriores ao exercício do atual mandato, de acordo com a Constituição. A mesma que permite sua cassação ao não zelar pelo Orçamento da União.
Com a cassação de seu mandato pelo Senado, Dilma poderá passar por dissabores semelhantes ao do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Operação Lava-Jato, que acaba de ser indiciado pela Polícia Federal por causa do triplex de Guarujá. Mesmo assim, o líder petista pretende comparecer ao Senado hoje para prestigiar a presidente afastada.
Cena de cinema
A expectativa em torno da presença de Dilma Rousseff hoje no Senado para fazer sua defesa e responder a perguntas dos parlamentares é grande, mas não tem a ver com a possibilidade de virada de votos em favor da volta dela à Presidência da República.
Tal missão é impossível. Por três motivos: a firme consolidação da posição majoritária pró-afastamento, a já proverbial falta de traquejo da presidente afastada no manejo do raciocínio argumentativo e a ausência de empatia entre ela e a plateia do caso. Dilma, então, vai apenas cumprir uma tabela? Sim e não.
Poderia optar por não ir, dada a inutilidade prática da ação. Mas vai – acompanhada de grande elenco, Luiz Inácio da Silva à frente – para fazer jus ao roteiro da mulher de “coração valente” que luta até o fim e assim propiciar um fecho apoteótico ao documentário que está sendo produzido sobre o processo de impeachment no qual terá o papel de vítima injustiçada e injuriada. Na impossibilidade de exibir um final feliz, exibe-se como mártir. Uma cena para o cinema.
Feito isso, Dilma desocupa a ribalta e volta ao ostracismo de onde Luiz Inácio da Silva a resgatou, num ato posto pelos fatos na condição de erro crasso que ficará marcado na história como exemplo das consequências do pecado da soberba. Nunca antes neste País terá sido visto um equívoco de tal magnitude, cometido por considerado mestre na matéria. Ainda que involuntariamente e por mais que acredite na fantasia, na vida real Dilma derrubou o mito do grande articulador, do político sensitivo de instinto infalível.
Com esse passo em falso, Lula se colocou em posição semelhante à de Paulo Maluf na eleição municipal de 1996, em São Paulo. Maluf inventou Celso Pitta convocando os eleitores a nunca mais votar nele caso a criatura desse errado. Deu e ficou mais ou menos por isso mesmo. O inventor nunca mais recuperou condições de competitividade em eleições majoritárias, mas seguiu recebendo da população delegação para representá-la na Câmara dos Deputados, a despeito de seus desacertos com a lei.
Lula garantiu ao eleitor de 2010 que Dilma Rousseff era um gênio da administração, sendo desmentido ao passar do tempo pela realidade da inépcia de sua criatura. Juntando-se a ineficácia da pessoa com a eficácia do PT na infração ao Código Penal, tem-se uma fatura robusta espetada na conta do criador na forma de queda na popularidade e perda da credibilidade.
Não obstante a posição de ponta nas pesquisas para a eleição presidencial de 2018, Lula é campeão no quesito rejeição. Não será candidato, pelo simples fato de que correria o risco de perder e/ou de relegar ao esquecimento os 80% de aprovação popular que ostentava ao fim de seu segundo mandato, patrimônio indispensável à sua biografia.
Por essa e várias outras é que o PT vê chegar a hora tão adiada: vai precisar se reinventar a partir de rigorosa autocrítica, mudança de procedimentos e abertura de espaço para novas lideranças, abandonando a dinâmica de partido de uma só estrela. No caso, cadente. No sentido pessoal e, simbolicamente, partidário.
Há gente decente no PT, capaz de revigorar a legenda. Há base social (e sobre isso falam os três meses decorridos entre o afastamento de Dilma pela Câmara e o epílogo no Senado, processo que no caso de Fernando Collor levou 48 horas) e há eleitores ávidos por serem reconquistados.
Daqui em diante cabe ao partido aproveitar esse capital remanescente para olhar para si sem condescendência e recomeçar. Desta vez compreendendo que outra forma de fazer política é possível. Embora custe esforço, a chance é de que seja consistente. De verdade e para sempre. Desde que os petistas estejam dispostos a trilhar o caminho menos percorrido da dificuldade, aceitando que a vida é difícil. E o bom exercício da política também.